Leonardo Martins - Mentalista

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Memória, Memória Reprimida e Falsa Memória

Memória é a retenção e recordação de experiencias. Uma memória reprimida é uma que se diz ser retida na mente inconsciente, onde pode afetar pensamento e ação mesmo se aparentemente se esqueceu a experiência em que a memória se baseia. Uma falsa memória é uma memória que se baseia no ouvir dizer ou sugestão. A falsa memória difere da memória errônea. Esta baseia-se em experiencias reais que são recordadas incorretamente Falsa memória são memórias de ter experimentado algo que na realidade nunca se experimentou.



Quão confiável é a nossa memória? Enganamo-nos muitas vezes ao pensar que nos recordamos corretamente de algo. Estudos sobre a memória mostram que muitas vezes construímos as nossas memórias após o fato, que somos susceptíveis a sugestões dos outros que ajudam a preencher os buracos na nossa memória de um dado evento. É por isso que um policia, ao investigar um crime, não deve mostrar uma fotografia de um só individuo à vitima e perguntar se esta reconhece o assaltante. Se é apresentado à vitima com uma linha de suspeitos para identificar e ela escolhe o individuo cuja fotografia lhe tinham mostrado, não há maneira de saber se ela se está a recordar do assaltante ou da fotografia.

Outro fato interessante sobre a memória é que estudos mostram que não há uma correlação significativa entre o sentimento subjectivo da certeza que uma pessoa tem acerca de uma memória e a exatidão dessa memória. Também contrariamente ao que muitas pessoas pensam, a hipnose não ajuda à exatidão da memória. Porque o sujeito é extremamente sugestionável enquanto hipnotizado, a maioria dos países não permitem testemunhos em tribunal feitos sob hipnose.[1] É possível criar falsas memórias nas pessoas por sugestão, mesmo memórias de vidas anteriores que nunca foram vividas. Tavris resume o estado atual da investigação da memória:

A mente não recorda todo o detalhe de um acontecimento, mas apenas alguns dados; preenchemos o resto baseados no que "deve ter sido". Para um acontecimento ficar guardado a longo prazo, uma pessoa tem de o perceber, codificar e ensaiá-lo--falar sobre ele--ou ele decai. (Isto parece ser o mecanismo principal por trás da amnésia infantil, o facto das crianças não desenvolverem memórias a longo prazo até cerca dos 3 anos) A pesquisa mostra também que mesmo experiencias emocionais que estamos certos nunca esqueceremos--o assassínio de Kennedy, a explosão da Challenger--tornar-se-ão vagas na memória, e os erros assaltarão o relato do que permanece.[2]

Tavris também reconta uma história sobre Jean Piaget, o célebre picólogo infantil. Piaget afirmava que as suas mais antigas memórias eram de ter sido quase raptado com a idade de 2 anos. Recordava detalhes como estar sentado no carro de bebê ver a enfermeira defender-se do raptor, arranhões na cara dela, um policia perseguindo o raptor. A história era reforçada pela enfermeira, os pais e outros que a tinham ouvido. Piaget estava convencido que se recordava do acontecimento. Contudo, ele nunca aconteceu. Treze anos depois da alegada tentativa de rapto, a antiga enfermeira escreveu aos pais de Piaget a confessar que tinha inventado toda a história. Piaget escreveu posteriormente: "Devo portanto ter ouvido, enquanto criança, o relato desta história... e projetado-a no passado em forma de memória visual, que era uma memória de uma memória, mas falsa." Bem falado.

Não sabemos exatamente como funciona a memória, embora haja muitos modelos explicatórios. Alguns destes identificam a memória com funções cerebrais. Num, por exemplo, a memória diminui com a idade porque os neurônios ;vão morrendo conforme vamos envelhecendo. Há apenas três modos de vencer este facto da natureza: 1. descobrir um modo de impedir os neurônios de morrer; 2. descobrir um modo de estimular o crescimento de novos neurônios ou 3. fazer os restantes neurônios trabalharem mais eficientemente.

Até agora, as opções 2 e 3 são as mais prometedoras. Contudo, alguns resultados positivos têm sido obtidos com a estimulação do crescimento de novas células cerebrais através de implantes fetais. E o Salk Institute tem relatado que a investigação em neurogênese tem sido encorajadora. Observaram o crescimento de neurônios no hipocampo de ratos colocados em ambiente estimulante. Investigação neurológica também obteve resultados ao fazer os neurônios trabalharem melhor usando ampakines, compostos químicos algumas vezes chamados "drogas de memória".Os primeiros testes com humanos mostraram excelentes resultados, mas a amostra era demasiado pequena para justificar alguma conclusão além de que os estudos devem ser continuar.

Por outro lado, um dos mais questionáveis modelos de memória é o que assume que toda a experiência de uma pessoa é "registada" na memória e que algumas das nossas memórias são acontecimentos demasiado traumáticos para os querermos recordar. Essas terríveis memórias são fechadas na alegada "mente inconsciente", i.e., reprimida, para só os recordarmos em adultos quando algo faz abrir a porta para a mente inconsciente. Quer antes, quer depois da memória reprimida ser chamada, provoca desordens físicas e mentais na pessoa.

Este modelo de memória é questionável porque assume que alguém que tenha problemas e funciona como um adulto saudável manteve os traumas de infância reprimidos, e assume que se recordar um trauma de infância, essa recordação é exata. O erro não está em que as pessoas não tenham experiências dolorosas e desagradáveis que não queiram recordar. Nem é errado afirmar que as crianças tem experiências maravilhosas e/ou brutais para as quais não tem bases conceptuais ou linguísticas. As crianças são muitas vezes incapazes de compreender o que experimentam. Como adultos, podem vir a compreender o que lhes aconteceu em criança. As crianças sofrem muitas vezes abusos, reprimem essa experiencia e mais tarde na vida recordam-na. Não há nenhum mito nisto.

Mas, não há prova de que recordamos tudo o que experimentamos. De facto, há bastantes provas de que é impossível guardar todos os elementos conceptuais de uma dada experiencia muito menos recordarmos todas. Nada prova que todas as memórias de acontecimentos indiquem que eles tenham acontecido como recordamos ou que tenham sequer acontecido. E não há qualquer prova de que a certeza subjectiva quanto à exatidão da memória ou o ser tão real se possa correlacionar com a sua exatidão Finalmente, a afirmação de uma conexão causal entre abuso e saúde ou comportamento não permite concluir que doença, mental ou física, seja um "sinal" de ter sofrido abusos.

O grande proclamador deste mito da memória foi Sigmund Freud, que aparentemente sabia que era um mito. O mito foi expandido na Dianética por L. Ron Hubbard, que aparentemente não se importava se era ou não um mito mas que culpou todas as desordens mentais e físicas por experiencias pré-natais e na infância, experiencias que não podiam ser "gravadas" pela mente consciente visto a maioria ocorrer antes do cérebro, a mente e a linguagem existirem numa pessoa.

O mito é a base para uma série de trabalhos pseudo-científicos sobre abuso de crianças por auto-proclamados especialistas como Ellen Bass, Laura Davis, Wendy Maltz, Beverly Holman, Beverly Engel, Mary Jane Williams e E. Sue Blume.[3] Através de reinforço comunal (O processo pelo qual uma afirmação se torna uma crença profunda pela repetida confirmação pelos membros de uma comunidade mesmo sem confirmação cietífica) muitas noções empíricas não apoiadas, incluindo a de que metade de todas as mulheres sofreram abusos sexuais, são tratadas como "fatos" por muitas pessoas.

Os perigos deste mito da memória são visíveis: não só as memórias falsas são tratadas como reais, mas as memórias reais de abusos reais podem ser tratadas como falsas memórias, fornecendo assim uma defesa credível a criminosos autênticos  No fim, ninguém se beneficia ao encorajar uma crença na memória que é falsa. Qualquer que seja a teoria sobre a memória que se defenda, não se permite examinar provas e tentar de um modo independente verificar afirmações de abusos recordados, é uma teoria em risco de provocar mais mal do que bem.

Uma variante da memória de não-vivida é a noção de que uma pessoa pode recordar vidas passadas. Este mito tem sido perpetuado por relatos de pessoas que, em sonhos ou sob hipnose, recordam experiencias de pessoas que viveram em épocas passadas. Um caso tipico de regressão a vidas passadas é o de Bridie Murphy:

Num dia de 1952, Morey Bernstein hipnotizou Virginia Tighe. Ela começou a falar numa variante de irlandês e afirmou ser Bridey Murphy de Cork, Irlanda. Bernstein hipnotizou Virginia, aliás Bridey, muitas vezes depois disso. Sob hipnose, ela cantou canções irlandesas e contou histórias da Irlanda, sempre como Bridey Murphy. Bernstein escreveu um livro, The Search for Bridey Murphy, que se tornou um best-seller. Gravações da sessões foram feitas e traduzidas em mais de 12 línguas. Os discos também venderam bem. O boom da reincarnação tinha começado.  
Jornais enviaram repórteres à Irlanda para investigar. Onde estava uma ruiva Bridey Murphy que viveu na Irlanda no séc. XIX? Um jornal--The Chicago American--encontrou-a no seculo 20 em Chicago. Bridie Murphey Corkell viveu na casa do outro lado da rua onde Elizabeth Tighe cresceu. O que Elizabeth contava debaixo de hipnose não eram memórias de uma vida anterior mas recordações da sua infância.

Então, os relatos de memórias reprimidas devem ser recusados à partida? Claro que não! Mas temos de tentar corroborar tais memórias com provas e testemunhos independentes antes de tirar conclusões sobre esses factos, especialmente se abusos ou crimes. Tais relatos devem ser tomados seriamente e examinados criticamente, dando-lhes toda a atenção e estudo que devemos dar a qualquer alegação de crime. Mas não devemos apressar o julgamento, quer sobre a exatidão das memórias quer sobre a relação causal entre experiências passadas e problemas atuais. Memórias reprimidas durante anos que são subitamente recordadas não devem ser automaticamente rejeitadas como falsas. Nem devem ser automaticamente aceites como verdadeiras. Em termos de verificação da sua exatidão, estas memórias devem ser tratadas do mesmo modo que qualquer outro tipo de memória.

Notas


[1] Ver Elizabeth Loftus, Eyewitness Testimony, Harvard University Press, 1980. Ver tambem artigos no Skeptical Inquirer, Vol. XII No. 2, Inverno 1987-88: "The Power of Suggestion on memória" por Robert A. Baker e "Fantasizing Under Hypnosis: Some Experimental Evidence" por Peter J. Reveen. Três testemunhas de um assalto armado ensaiado foram hipnotizados por Reveen. Os seus relatos eram bastante detalhados mas nenhum concordava com o outro e nenhum se aproximava sequer dos factos reais que narrava.
[2] Carol Tavris, "Hysteria and the incest-survivor machine," Sacramento Bee, Forum, 17 Janeiro 1993, p. 1. Tavris é o autor de várias obras de psicologia, incluindo The Mismeasure of Woman (New York: Simon & Schuster, 1992). Tambem editor de Every Woman's Emotional Well-being (Garden City, N.Y. : Doubleday, 1986).
[3] ibid.


Fonte: Dicionário do Cético
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